Capítulo I: Introdução
1. Porque
Direito Penal e não Direito Criminal ou outra denominação?
Existem
divergências acerca do tema. Alguns
autores criticam a expressão Direito Penal em razão de tal expressão dar ênfase
à pena, não abrangendo as medidas de segurança, sustentando ser mais apropriado
dizer Direito Criminal (GARCIA, 1973, p.7 apud
GRECO, 2014, p.1). Já os adeptos a expressão Direito Penal justificam tal
preferência por ser a pena condição de existência jurídica do crime (BATISTA,
1996, p.48 apud GRECO, 2014, p.2).
Apesar da discussão existente, predomina a expressão Direito Penal.
2. Finalidade
do Direito Penal
A finalidade do
Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários, essenciais ao
individuo e a comunidade, por meio da cominação, aplicação e execução de penas.
Tais bens, por serem extremamente valiosos, não podem ser suficientemente
protegidos pelos demais ramos do Direito. A pena é o
instrumento de coerção utilizado pelo Direito Penal para a proteção dos bens,
valores e interesses mais significativos da sociedade.
Cabe ressaltar
que os bens a serem tutelados pelo Direito Penal tendem a se modificar em razão
das transformações existentes na sociedade. Bens que outrora eram considerados
de extrema importância e merecedores da especial tutela do Direito Penal, hoje,
já não carecem ser por ele protegido. É o caso da revogação dos delitos de
sedução, rapto e adultério, pela Lei 11.106, de 28 de março de 2005.
Há, no entanto,
divergências doutrinárias acerca da finalidade do Direito Penal. Parte da
doutrina afirma que o Direito Penal não atende a finalidade de proteção de bens
jurídicos, pois, quando é aplicado, o bem jurídico que teria de ser por ele
protegido já foi efetivamente atacado. Segundo JAKOBS, 2000, apud GRECO, 2014, p.3, “o que está em
jogo não é a proteção dos bens jurídicos, mas, sim, a garantia de vigência da
norma, ou seja, o agente que praticou uma infração penal deverá ser punido para
que se afirme que a norma penal por ele infringida está em vigor”. Apesar da
supracitada posição doutrinária, prevalece aquela a respeito da finalidade
protetiva de bens que é atribuída ao Direito Penal.
3. Seleção
dos bens jurídicos penais
A seleção de
bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal pelo legislador penal possui
forte conotação subjetiva, natural da pessoa humana encarregada de levar a
efeito tal seleção. Com o objetivo de orientar tal seleção, tem-se como a
primeira fonte de pesquisa a Constituição. Valores como a liberdade, a
segurança, o bem estar social, a igualdade e a justiça, entre outros tidos como
fundamentais (art. 1º ao 5º da CF), passam a fazer parte dos valores a serem
protegidos pelo Direito Penal.
Neste sentido, a
Constituição passa a desempenhar duplo papel. De um lado orienta o legislador
na eleição de valores considerados indispensáveis à manutenção da sociedade e,
do outro, segundo uma concepção garantista do Direito Penal, impede que o mesmo
legislador, com uma suposta finalidade protetiva de bens, proíba ou imponha
determinados comportamentos, violadores de direitos fundamentais atribuídos a
toda pessoa humana.
4. Códigos
Penais no Brasil
Depois da
proclamação da Independência, em 1822, após ser submetido às Ordenações Afonsinas,
Manoelinas e Filipinas, o Brasil editou os seguintes Códigos:
-Código Criminal
do Império do Brasil, de 16 de dezembro de 1830;
-Código Penal
dos Estados Unidos do Brasil, Decreto 847, de 11 de outubro de 1890;
-Consolidação
das Leis Penais, Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932;
-Código Penal,
Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940, o qual se encontra em vigor até
hoje;
-Código Penal, Decreto-Lei
1.004, de 21 de outubro de 1969, revogado em 11 de outubro de 1978 sem ter
entrado em vigor;
-Código Penal, Lei
7.209, de 11 de julho de 1984, o qual revogou a Parte Geral do Código Penal de
1940.
Nosso Código
Penal, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940, é composto por duas
partes: geral (arts. 1º a 120) e especial (arts. 121 a 361).
A parte geral é
destinada a edição de normas que vão orientar o interprete quando da
verificação da ocorrência, em tese, de determinada infração penal. Ali
encontramos normas destinadas a aplicação da lei penal, tendo o legislador esclarecido
quando se considera praticado o delito, o tempo do crime, conceituado
fundamentos da existência do delito, a conduta do agente, bem como o nexo de
causalidade entre esta e o resultado, elenca causas que excluam o crime, dita
regras que tocam diretamente a execução da pena infligida ao condenado, bem
como a aplicação de medida de segurança ao inimputável ou semi-imputável,
enumerado causas de extinção de punibilidade, enfim, ocupando-se de regras que
são aplicadas aos crimes previstos no próprio Código Penal, como também a toda
legislação extravagante.
A parte especial
define o conceito de delitos e comina as penas. Contém ainda normas de conteúdo
explicativo, as quais definem, por exemplo, o conceito de funcionário público
(art. 327 CP). Ao lado dos artigos, de forma destacada, percebe-se a existência
de expressões denominadas de indicação
marginal ou rubrica, destinadas a
informar a matéria por ele anunciada.
O movimento de
codificação, que teve suas raízes no período iluminista e se concretizou no
século XIX, com a finalidade de minimizar a insegurança jurídica trazida pela existência
de inúmeros diplomas penais esparsos, os quais eram, por vezes, contraditórios
e incoerentes por falta de sistematização entre eles. Tal movimento está sendo
minado pela inflação legislativa que assola a maioria dos ordenamentos
jurídicos, a exemplo do que ocorre no Brasil. Em nosso ordenamento jurídico existem
inúmeras leis extravagantes que definem inúmeras infrações penais, como, por
exemplo, as leis que definem os crimes de tortura, racismo, drogas, hediondos,
etc. Tal fenômeno faz com que se perca a visão sistêmica, proporcional e
racional do nosso ordenamento, surgindo dúvidas no momento da interpretação
conjugada desses textos legais. A descodificação penal altera a eficácia da lei
penal e traz como consequência uma severa lesão aos princípios da necessidade, sistematicidade,
racionalidade, unidade, simplicidade e proporcionalidade que devem orientar a
matéria.
5.
Direito Penal Objetivo e Direito Penal Subjetivo
A doutrina
classifica o Direito Penal em objetivo e subjetivo. Direito Penal Objetivo é o
conjunto de normas editadas pelo Estado que definem os crimes e contravenções,
impondo ou proibindo determinadas condutas sob a ameaça de sanção ou medida de
segurança, bem como todas as outras que cuidem de questões de natureza penal,
como por exemplo, as que determinam a exclusão de crimes, isenção de penas ou
explicam determinados tipos penais. Já o Direito Penal Subjetivo é a
possibilidade que tem o Estado de criar e fazer cumprir suas normas, executando
as decisões condenatórias proferidas pelo Poder Judiciário. É o próprio ius puniendi. O Estado exerce o ius puniendi quando o Poder Legislativo cria
as figuras típicas ou quando o Poder Judiciário, observando o devido processo legal,
condena o agente que viola a norma penal e executa sua decisão.
O ius puniendi pode ser dividido em positivo
e negativo. O ius puniendi positivo é
quando o Estado cria os tipos penais e executa suas decisões condenatórias. O ius puniendi negativo é quando o Estado
derroga preceitos penais ou restringe o alcance das figuras delitivas,
atribuição que compete ao Supremo Tribunal Federal, quando declara a
inconstitucionalidade de lei penal, produzindo eficácia contra todos e efeito
vinculante (art. 102, §2, da CF).
6. Modelo
Penal Garantista de Luigi Ferrajoli
Num sistema em
que há rigidez constitucional, a Constituição, de acordo com a visão piramidal
proposta por Kelsen, é a mãe de todas as normas. As normas de um ordenamento
não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As
inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que
se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de
nenhuma outra norma superior e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento.
Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento possui uma norma
fundamental, que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas
espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado
de ordenamento (BOBBIO, 1982, p.49 apud GRECO,
2014, p.8). Todas as normas consideradas inferiores vão buscar validade na
norma fundamental. Não podem contrariá-la sob pena de serem expurgadas do nosso
ordenamento jurídico em face do vício de inconstitucionalidade. A Constituição
nos protege da arrogância e da prepotência do Estado garantindo-nos contra
qualquer ameaça a nossos direitos fundamentais.
Neste sentido, o
garantismo, entendido no sentido do Estado Constitucional de Direito como
conjunto de vínculos e de regras racionais impostas a todos na tutela de
direitos, representa o único remédio para os poderes selvagens. As garantias
são divididas em primárias - limites e vínculos normativos (proibições e
obrigações, formais e substancias), impostos na tutela dos direitos, ao
exercício de qualquer poder – e, secundárias – diversas formas de reparação
(anulabilidade dos atos inválidos e a responsabilidade pelos atos ilícitos)
subsequentes às violações das garantias primárias (FERRAJOLI, 2001, p. 132 apud GRECO, 2014, p.9).
No modelo
constitucional garantista a magistratura exerce papel fundamental, principalmente
no que diz respeito ao critério de interpretação da lei conforme a
Constituição. O juiz não é mero aplicador da lei ou executor da vontade do
legislador ordinário, mas sim o guardião de nossos direitos fundamentais. Ante
a contrariedade da norma com a Constituição, deverá o magistrado, sempre, optar
por esta última, fonte verdadeira de validade da primeira (FERRAJOLI, 2001, p.
132 apud GRECO, 2014, p.9).
A teoria
garantista penal tem sua base fincada em dez axiomas:
1 Nulla poena sine crimine (Somente será
possível a aplicação de pena quando houver, efetivamente a prática de
determinada infração penal);
2 Nullum crime sine lege (A pratica de
determinada infração penal deverá estar expressamente prevista na lei penal);
3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate (A
lei penal somente poderá proibir ou impor comportamentos sob ameaça de sanção
se houver absoluta necessidade de proteger determinados bens, tidos como
fundamentais ao nosso convício em sociedade, em atenção ao chamado direito
penal mínimo);
4 Nulla necessitas sine injuria (As
condutas tipificadas pela lei penal devem, obrigatoriamente, ultrapassar a
pessoa do agente, isto é, não poderão se restringir à sua esfera pessoal, à sua
intimidade ou ao seu particular modo de ser, somente havendo possibilidade de
proibição de comportamentos quando estes vierem a atingir bens de terceiros);
5 Nulla injuria sine actione (As
condutas tipificadas pela lei penal devem ser exteriorizadas mediante uma ação);
6 Nulla actio sine culpa (Somente as
ações culpáveis poderão ser reprovadas);
7 Nulla culpa sine judicio (Necessidade
de adoção de um sistema nitidamente acusatório, com a presença de um juiz
imparcial e competente para o julgamento da causa);
8 Nullum judicium sine accusation (Necessidade
de um juiz que não se confunda com o órgão de acusação);
9 Nulla accusatio sine probatione (O
ônus probatório não poderá ser transferido para o acusado da prática de
determinada infração penal);
10 Nulla probation sine defensione (Deve
ser assegurada a ampla defesa com todos os recursos a ela inerentes).
7.
Privatização do Direito Penal
A Privatização
do Direito Penal diz respeito à retomada de prestígio da vítima no processo penal,
sendo seus interesses priorizados pelo Estado. Muitos institutos penais e
processuais penais foram criados mais sob o enfoque dos interesses da vítima do
que do agente que praticou a infração penal. Sua vontade é levada em
consideração, por exemplo, nas ações de iniciativa privada, nas ações de
iniciativa pública condicionadas à representação, no arrependimento posterior
(art. 16 do Código Penal), na reparação dos prejuízos por ela experimentados,
na lei que criou os Juizados Especiais Criminais (9.099/95), que depois de
esclarecer que o processo deverá ser orientado pelos critérios da oralidade, da
informalidade, da economia processual e da celeridade, afirma que seus
objetivos serão sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima
e a aplicação de pena não privativa de liberdade.
A introdução da
relação autor-vítima-reparação no sistema de sanções penais nos conduz a um
modelo de três vias, onde a reparação surge como uma terceira função da pena
conjuntamente com a retribuição e a prevenção.
8. Direito
Penal Moderno
O chamado
Direito Penal moderno é um fenômeno quantitativo observado na parte especial do
Código Penal, principalmente dos países ocidentais. Não há código que nos últimos
anos não haja aumentado o catálogo de delitos com novos tipos penais, novas
leis especiais e uma forte agravação das penas. Se fazem presentes na maioria
dos Códigos Penais o direito penal do risco, antecipação das punições, aumento
dos crimes de perigo abstrato, delitos econômicos, crime organizado, lavagem de
dinheiro, direito penal ambiental, terrorismo, responsabilidade ambiental da
pessoa jurídica, crimes cibernéticos, drogas, mudanças de tratamento do criminoso,
enxergando-o como um inimigo, aumento da proteção a bens jurídicos abstratos,
como a saúde pública, recrudescimento das penas, dificuldades para reintegração
social do preso, aumentando o efetivo tempo de cumprimento da pena,
dificultando sua saída do cárcere no que diz respeito a progressão de regime ou
livramento condicional.
O Direito Penal
Moderno segue as orientações políticos-criminais de um Direito Penal máximo, deixando
de lado as garantias penais e processuais penais sob o argumento de defesa da sociedade.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.